SOBRE A VIDA E A PSICOLOGIA DE JUNG
SOBRE A VIDA DE JUNG
O psicólogo que falarei adiante, Carl Gustav Jung, nasceu em 1875 na cidade de Kesswill, Suiça. Ele foi filho de pastor protestante e de uma mãe bastante afetuosa. Na juventude, se formou em medicina, no ano de 1900, época da publicação do livro ''A interpretação dos sonhos'' de Freud. Em seguida, foi assistente e colaborador de Eugen Bleuler na clínica psiquiátrica de Zurique. Como falarei mais a frente, se tornou com o passar dos anos um admirador do trabalho de Freud e depois seu amigo e colaborador.
A vida de Jung, um dos maiores pensadores e psicólogos do século XX, foi marcada por muitas experiências interiores e oníricas, premonições, pressentimentos, pesquisas, atendimentos em clínicas psiquiátricas e visões espirituais. Ele não foi somente um exímio psiquiatra, mas também escritor, artista, professor, psicólogo e pensador, cujas obras refletem um universo rico nas mais diversificadas formas de conhecimento, desde o campo da medicina psiquiátrica, passando pela filosofia e a psicologia, até o campo da antropologia, da mitologia, da religião, da simbologia alquímica e exotérica, e do gnosticismo.
Na sua bem conhecida autobiografia, Memórias, sonhos e reflexões, Jung aborda os acontecimentos de sua infância e adolescência; bem como os seus estudos pelas mais diversas áreas do conhecimento. Há também um capítulo dedicado a sua descoberta da medicina psiquiátrica e também um capítulo que o mesmo aborda, com riqueza de detalhes, sobre o seu encontro com Freud, o qual teve o privilégio de conversar por treze horas sobre os mais diversos conhecimentos e assuntos. Não é possível deixar de mencionar a sua experiência com o inconsciente, o qual teve a felicidade de desenvolver uma teoria cujos elementos foram responsáveis pelo desenvolvimento da psicologia analítica. Nessa experiência, Jung pode desenvolver um método de investigação que ficou conhecida como imaginação ativa.
O psicólogo nascido em Zurique no século XIX, se referindo a sua vida, vai dizer que ela foi mais rica em acontecimentos interiores do que acontecimentos exteriores, os quais foram aspectos meramente secundários da sua existência. Em seu livro autobiográfico, o mestre suíço vai dizer de forma bem clara e esclarecedora: ''As circunstâncias exteriores não podem substituir as interiores. Por isso, a minha vida é pobre em acontecimentos exteriores. Não posso contar muito sobre estes; ia parecer vazio ou inócuo. Só consigo compreender-me a partir dos acontecimentos interiores. São eles que constituem o que houve de especial na minha vida e é deles que trata a minha “autobiografia”. No mesmo livro, o psicólogo, a respeito do desbravamento do inconsciente, vai dizer: ''Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento,e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade''.
Uma das grandes conquistas da carreira de Jung foi ter se tornado diretor clínico do prestigioso hospital Burghölzli e também ser professor na universidade de Zurique. Enquanto adquiria essas conhecimentos e vivências, teve a brilhante ideia de inventar um teste de associação de palavras, que foi fruto da experiência dos diversos atendimentos aos seus pacientes, tendo como resultado os seus diversos trabalhos de análise de casos, interpretações de sonhos e brilhantes estudos sobre a condição clínica dos mesmos. Foi nesse meio tempo que Jung conheceu Freud.
Este, como todos sabem, ficou encantado com o intelecto de Jung, enquanto este também havia sido influenciado enormemente pelas descobertas da psicanálise. O fruto dessa parceria, resultou em ótimas colaborações de Jung para a psicanálise, o qual deu à luz uma excelente obra acerca da esquizofrenia intitulada ''Psicogênese das doenças mentais''. É bom lembrar que naquela época a esquizofrenia era conhecida pelo nome de demência precoce.
No entanto, a relação de Jung com Freud não durou muito, tanto por causa de divergência intelectuais, quando pelo fato de Jung querer agregar conhecimentos religiosos e místicos nos seus escritos com a finalidade estudar a fundo o psiquismo humano. Por outro lado, o psicólogo de Zurique não compactuava com a perspectiva freudiana sobre a libido e sobre a sua concepção puramente mecanicista sobre os sonhos. A partir daí, os dois se separam definitivamente, causando uma grande depressão em Jung e um desapontamento muito profundo em Freud, o qual baniu Jung do círculo psicanalítico. Jung, a respeito de Freud vai dizer: ''Freud nunca se interrogou acerca do motivo pelo qual precisava falar continuamente sobre sexo, porque esse pensamento a tal ponto se apoderara dele. Nunca percebeu que a 'monotonia da interpretação’ traduzia uma fuga diante de si mesmo ou de outra parte de si que ele teria talvez que chamar de 'mística’. Ora, sem reconhecer esse lado de sua personalidade, era-lhe impossível pôr-se em harmonia consigo mesmo.(…) Ele tornou-se vítima do único lado que podia identificar, e é por isso que o considero uma figura trágica: pois era uma grande homem e, o que é principal, tinha o fogo sagrado''.
É importante enfatizar que o pai da psicanálise não concordava com a importância que Jung dava a espiritualidade no campo da psicologia. Por canta disso, os conflitos foram inevitáveis e a relação foi rompida para sempre. A partir dessa separação, o psicólogo Jung seguiu um caminho intelectual próprio, delineando sua própria teoria e erguendo o seu próprio edifício teórico através das experiências com os seus pacientes, dos estudos das simbologias e mitologias, das suas autoanálises e visões, e de suas vivências em outras culturas e povos.
A respeito dessa nova fase, o pensador suíço vai dizer: 'Depois da ruptura com Freud, começou para mim um período de incerteza interior, e mais que isso, de desorientação. Eu me sentia flutuando por ainda não encontrar minha própria posição. O que mais almejava nesse momento era adquirir uma nova atitude em relação aos meus doentes. Em primeiro lugar, decidi confiar incondicionalmente naquilo que contassem sobre eles mesmos. Pus-me, então, à escuta do que o acaso trazia. Constatei logo que relatavam espontaneamente seus sonhos e fantasias; eu apenas formulava perguntas, tais como: 'O que pensa disso?'; ou: 'Como compreende isso? De onde vem essa imagem?' Das respostas e associações apresentadas por eles, as interpretações ocorriam naturalmente. Deixando de lado qualquer ponto de vista teórico, apenas os ajudava a compreender por si mesmos suas imagens''.
Em meio a esse processo doloroso, Jung conseguiu desenvolver uma rica literatura mediante o recurso das entrevistas aos seus pacientes e de seus incentivos terapêuticos, como desenhos, pinturas e trabalhos artísticos. As obras que surgiram depois do rompimento com Freud foram: Símbolos da transformação, o qual desenvolve sua concepção sobre a libido ou energia psíquica; e Tipos psicológicos, o qual desenvolve um conhecimento sobre os diversos tipos de personalidade, como exemplo, os tipos introvertido e extrovertido; sensorial e intuitivo; e pensamento e sentimento. Com o tempo, o nosso psicólogo e psiquiatra foi refinando suas concepções de mundo e os seus conceitos imprescindíveis para a compreensão do psiquismo, como por exemplo, os seus conceitos de ego, inconsciente pessoal e supra-pessoal (ou coletivo), anima-animus, sombra, complexos, arquétipos, entre outros.
No decorrer da vida, o pai da psicologia analítica teve a felicidade de visitar vários países e ministrar inúmeras conferências e exposições de sua teoria psicológica. Pode, ainda, descobriu muitas conexões entre as culturas, cujos conteúdos apresentam uma raiz arquetípica, o qual está presente no inconsciente coletivo, uma realidade herdada por cada indivíduo. Os seus trabalhos certamente influenciaram os trabalhos de filósofos como Bachelard, da psiquiatra brasileira Nise da Silveira, da psicóloga alemã Marie-Louise Von Franz e outros que se tornaram seus admiradores e discípulos. Já no fim da vida, Jung colaborou com duas obras que trouxeram ainda mais popularidade ao seu nome, entre elas: O homem e seus símbolos, com o auxílio dos seus discípulos (que também escreveram artigos na obra), e Memória, sonho e reflexões, sob organização e edição de Aniela Jaffé.
Em 1961, com 85 anos, falece o grande psicólogo Carl Gustav Jung na cidade Küsnacht, Suíça. Com o auxílio de muitos colaboradores e até mesmo de sua esposa Emma Jung, o mestre da psicologia analítica deixou um legado enorme, o qual somam mais de 40 obras, sem falar daquelas onde consta os seus trabalhos artísticos com mandalas e outros desenhos com pinturas, obras essas intituladas ''O livro vermelho'' e ''O livro negro''.
SOBRE A PSICOLOGIA ANALÍTICA DESENVOLVIDA POR JUNG
A psicologia analítica desenvolvida por Jung é uma escola científica de psicologia que se opõe ao pensamento de Freud e da psicanálise em três aspectos: ao conceito de religiosidade, ao conceito de libido e a estrutura da psique e do inconsciente. Enquanto Freud se foca nos conteúdos recalcados do inconsciente e pensa libido numa perspectiva de ordem sexual, Jung amplia os horizontes do inconsciente e ainda encara a libido numa outra perspectiva, ou seja, ela é a energia que mobiliza todo o ser do indivíduo, não somente nos seus aspectos sexuais, mas também na sua religiosidade e espiritualidade.
No livro Símbolos da transformação, Jung diz com clareza a sua concepção de libido, entendida como uma energia psíquica: ''Ao invés da teoria sexual das Drei Abhandlungen, pareceu-me mais adequado um conceito energético. Ele me tornou possível identificar a expressão ''energia psíquica'' com o termo ''libido''. Este último indica um desejo ou um impulso que não é refreado por qualquer instância moral ou outra. A libido é um appetitus em seu estado natural. Filogeneticamente são as necessidades físicas como fome, sede, sono, sexualidade, e os estados emocionais, os afetos, que constituem a natureza da libido. Todos estes fatores têm suas diferenciações e sutis ramificações nesta tão complicada psique humana''.
Como foi possível notar, Jung amplia as noções referentes ao conceito de libido, sem desconsiderar as mais variadas dimensões do psiquismo humano, dando valor ao fenômeno da religiosidade na vida psíquica do ser humano. Jung via a religiosidade como um fenômeno de grande importância para o encontro do indivíduo com a sua alma e com a imago dei enraizado no seu interior, um arquétipo que diz respeito a totalidade.
O psiquiatra de Zurique não só postulava a existência de um inconsciente pessoal tal como Freud já havia muito bem desenvolvimento (onde estão presentes os nossos complexos e os nossos conteúdos reprimidos), como também a do inconsciente coletivo, que é uma camada profunda da psique onde estão presentes os arquétipos, ou seja, as imagens primordiais comuns a toda humanidade.
A psique, tal como estudada pela psicologia junguiana, não é analisada somente através de nosso ego, o qual é apenas uma pequena parte de nosso ser. Na verdade, essa ciência psicológica formula outros conceitos para ampliar a nossa compreensão do psiquismo humano, como por exemplo, os conceitos arquetípicos de persona, sombra, animus-anima e o si-mesmo ou Self, o qual corresponde a nossa totalidade, incluindo tanto aspectos conscientes, quanto inconscientes de nossa personalidade.
O que o psicólogo suíço entende por arquétipos e também por inconsciente coletivo também são fundamentais para o desenvolvimento da psicologia analítica. No livro ''Os arquétipos e o inconsciente coletivo'', Jung deixa claro a importância que o mesmo dá na sua psicologia a respeito desses conceitos às vezes difíceis de serem compreendidos na prática, os quais são tão importantes para a sua a fundamentação teórica e prática de sua ciência: ''Este (o inconsciente pessoal), porém, repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda chamamos de inconsciente coletivo. Eu optei por coletivo pelo fato do inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são cum grano salis os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos.''
Mais a frente, nesse mesmo livro, Jung dá uma ideia do que ele entende por arquétipos: ''O arquétipo representa um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta''. No outro parágrafo, ele mostra onde eles estão presentes e onde podem se identificados: ''O significado do termo arquétipo fica sem dúvida mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e os contos de fada''.
Como foi possível observar, a psicologia analítica trabalha com várias fontes de conhecimento, como a alquimia, a mitologia, a religião, as filosofias orientais e ocidentais, os ensinamentos esotéricos e os contos de fadas os mais diversos como forma de desenvolver uma fenomenologia dos arquétipos, os quais estão enraizados no inconsciente supra-pessoal e são responsáveis pelas manifestações oníricas ou até mesmo alguns distúrbios psicológicos graves, como as psicoses. Vale lembrar, que o psiquiatra suíço desenvolveu excelentes estudos sobre uma doença que faz parte do rol das psicoses, a saber, a esquizofrenia, que na época conhecida como uma demência precoce.
A psicologia analítica criada por Jung tem entre tantos focos o estudo da relação do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade em que vive. Um termo importante empregado por essa escola de psicologia é o da individuação, o qual foi cunhado por jung para se referir a capacidade de um ser humano de se diferenciar da coletividade nos seus gestos, atitudes e perspectivas. A individuação é um conceito chave importantíssimo para o trabalho de análise dos pacientes, pois é por meio desse processo que o indivíduo adquiri maior autonomia frente a coletividade e se torna um ser único, ou seja, um ser capaz de obter maior autoconhecimento e compreender melhor a sua essência individual. No livro escrito por Jung chamado ''O eu e o inconsciente'', há uma clara definição de individuação, um conceito que não tem nada haver com individualismo: “Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos pois traduzir ‘individuação’ como ‘tornar-se si mesmo’ (Verselbstung) ou ‘realizar-se do si-mesmo’ (Silbstverwirklichung).”.
Em outra passagem do livro, vemos mais uma excelente definição desse conceito elaborado por Jung: ''A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como uma estranheza de sua substância ou de seus componentes, mas sim como uma combinação única, ou uma diferenciação gradual e faculdades que em si mesmas são universais. (...) A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna um ser único que de fato é''.
Alessandro Nogueira
Enviado por Alessandro Nogueira em 13/09/2020
Alterado em 17/12/2020