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Nise da Silveira foi uma de nossas maiores psicólogas e psiquiatras brasileiras. Desenvolveu um trabalho excepcional com pacientes esquizofrênicos, revolucionando o campo da psiquiatria, da psicologia e da terapia ocupacional através de uma abordagem mais humana com pessoas que sofriam de doenças psíquicas mais graves. Na década de 40, a psiquiatra brasileira voltou a trabalhar no centro psiquiátrico Padro II, no bairro Engenho de Dentro, em Minas Gerais.
Em vez de métodos truculentos e desumanos, a psiquiatra procurava estimular a criatividade de seus pacientes por meio do incentivo das formas mais variadas de arte. A sua obra principal, Imagenns do inconsciente, é um celeiro de trabalhos que desvelam as ricas imagens trazidas à luz da alma de seus pacientes, contabilizando 270 ilustrações de produções artísticas.
A autora diz no prefácio de seu livro repleto de valiosas intuições que: ''o mundo interno do paciente psicótico encerra insuspeitadas riquezas e conserva mesmo após longos anos de doença''. Com base nessa própria riqueza, Nise enxergou a possibilidade de se utilizar da arte para dar vida a esse mundo tão pouco compreendido da alma de pacientes psicóticos, abrindo espaço para algumas atividades artísticas, como desenho, pintura e modelagem, numa tentativa fascinante de deixá-los livres para se expressarem e revelarem a sua própria vida anímica.
Não se pode deixar de lembrar que ela, ao lado de colaboradores e monitores do seu atelier, também utilizou o recurso da dramatização, a fim de ajudar o paciente na assimilação de imagens, especialmente aquelas referentes ao mito do dragão-baleia, uma oportunidade para o paciente expressar uma tendência ao renascimento após a descida ao inconsciente e repensar o papel do herói em meio aos perigos de não voltar mais de suas entranhas. Nas próprias palavras de nossa autora brasileira: "O tema mítico da viagem e do encontro com o monstro marinho é como todos os temas míticos 'a expressão simbólica de dramas interiores inconscientes' ".
Com essa dramatização, Nise tinha em mente dar livre curso a capacidade do paciente de encontrar por si só uma maneira mais criativa de desenvolver algum grau de consciência com o foco na ascensão do herói.
Foi no próprio centro psiquiátrico que ela criou o atelier de pintura. A respeito desse projeto, Nise nos dá o seguinte testemunho: ''O atelier de pintura era inicialemnte apenas um setor de atividade entre vários outros setores da terapêutica ocupacional, seção que estava sob minha responsabilidade no centro psiquiátrico Pedro II. Mas aconteceu que desenho e pintura espontâneos revelaram-se de tão grande interesse científico e artístico que esse atelier cedo adquiriu posição especial''.
A terapeuta ocupacional brasileira, dotada de uma posição crítica, se opunha a maneira como as instituições psiquiátricas tratavam os pacientes adoecidos pela psicose e esquizofrênia, indo na contramão de métodos agressivos, como choques elétricos e confinamentos.
Nise da Silveira diz que organizou o atelier de pintura em 9 de setembro de 1946 ao lado de seu colaborador Almir Malvignier. Sobre as pretensões desse projeto (desenvolvido intensamente pelo seu colaborador), a autora mesma diz: "Nunca pretendeu influenciar os doentes que frequentavam o atelier, respeitava e tratava de pessoa para pessoa aqueles habitantes do hospital psiquiátrico".
No primeiro capítulo dessa obra magna, é relatado as experiências do atelier de pintura, os trabalhos ali produzidos; enfim, há uma rica análise sobre as pinturas abstratas desenvolvidas pelos paciente. Nise da Silveira diz o seguinte a respeito de tais abstrações: "Certamente a linguagem abstrata presta-se a dar forma a segredos pessoais, satisfazendo uma necessidade de expressão sem que outros os devessem. Não se tenha a ilusão de acreditar que onde forem vistas linhas imbricadas isso signifique ambição. Cedo me convenci da impossibilidade do estabelecimento de códigos. A linguagem abstrata cria-se a si própria a cada instante, ao impulso das forças em movimento no inconsciente. Era uma constatação empírica".
No segundo capítulo da obra, a autora se prontifica a falar sobre dissociação e ordenação, bem como o afeto catalisador impulsionado pelas imagens circulares em luta para compensar a dissociação do consciente. A autora mesma escreve: "As imagens circulares apresentadas mostram que na esquizofrênia não estão mortas as forças inconscientes de defesa em luta para compensar a dissolução do consciente. Essas forças emergem de maneira espontânea, sob várias formas, e muitas vezes mergulham de novo no inconsciente, perdendo-se, pois são enormes as dificuldades que se opõem à ordenação do tumulto que é a psique do indivíduo na condição esquizofrênica".
Há um capítulo dedicado a falar exclusivamente sobre a esquizofrênia e a origem desse conceito; e em seguida, a autora aborda sobre as imagens arquetípicas presentes na manifestação esquizofrênica. E há, mais adiante, um capítulo que busca penetrar no mundo interno do paciente psiquiátrico. Vemos também sessões que abordam sobre os temas míticos do dragão-baleia, de Dafne, de Dionísos, da união de opostos e do Deus sol.
Assim, é possível para nós leitores e apreciadores ter uma melhor noção da dinâmica psíquica e inconsciente de tais seres humanos adoecidos, bem como uma compreensão do mundo quase inacessível de seus pacientes.
Além das mais variadas expressões artísticas como forma de compreender o psiquismo e o mundo interno de seus pacientes, Nise da Silveira utilizou animais em terapias.
O seu recurso terapêutico estava embasado não somente nos conhecimentos da ciência médica de sua época, mas também nas contribuições de Bleuler, Freud e na psicologia analítica de Jung, cujos principais interesses são a consciência, os arquétipos, o inconsciente pessoal e coletivo. Na parte dedicada a falar sobre a psicologia da esquizofrenia na perspectiva de Jung, Nise da Silveira enfatiza as contribuições do psicólogo suiço, no qual busca unir observação clínica e experimentação. Falando sobre o livro Vol.3 das obras escolhidas, ''Psicogênese das doenças metais'', mais especificamente no capítulo dedicado a esquizofrenia, a autora brasileira nos apresenta a perspectiva de Jung incorporada em seu próprio pensamento como base para trabalhar com seus pacientes: ''Já em Psicologia da demencia precoce e conteúdo das psicoses ressaltam características marcantes do pensamento junguiano quanto à vida psíquica em geral. Se Jung dá o máximo esforço para desvendar as significações encerradas nos desafiantes sintomas da esquizofrenia, não o faz só por curiosidade científica. Ao mesmo tempo acentua que as múltiplas manifestações da doença se originam de atividades psíquicas comuns a todos os seres humanos, apenas liberadas de freios e formuladas sob forma simbólica na loucura''. Futuramente Jung desenvolveu a perspectiva referente as atividades psíquicas comuns à humanidade, dando origem ao conceito do inconsciente coletivo, uma de suas grandes contribuições à psicologia, nas quais a nossa autora se inspira para fundamentar suas obras.
Certamente "Imagens do inconsciente" é uma obra-prima que contém inúmeras pinturas trazidas pelos seus pacientes. Em cada uma delas, existem os registros dos autores e ricas análises fundamentadas em estudos da religião, da psicologia e da mitologia. Todas elas contém também as datas de quando foram criadas. Segundo Marco Luccheesi, presidente da acadêmia brasileira de letras, a psiquiatria tradicional foi abalada sem piedade quando Nise da Silveira trouxe à luz dos brasileiros essa preciosa obra. Segundo ele: ''Um livro extraordinário, de uma singularidade tal que causa espanto e admiração. Fruto de anos e intensa pesquisa, escrito numa prosa exemplar, as imagens perturbam pela rara e estranha beleza. Era uma denuncia total, sem meias palavras [...]''
Eis aqui um trecho mais teórico desse livro de principal envergadura de Nise da Silveira, falando da descida do herói às entranhas do insconsciente simbolizado por um monstro ou uma baleia tal como nos narra o mito de Hércules ou a história de Jonas no ventre da baleia: "Jung entende o mito do herói como esforço do próprio inconsciente para resgate da consciência dos perigos da regressão. E assim, através de descidas arriscadas ao enorme ventre do monstro e de árduas subidas à luz solar, processa-se o fortalecimento e a extensão da consciência. O mito do herói com todas as suas façanhas refere-se não só a conquista da consciência e busca do caminho para cada indivíduo, mas igualmente a subidas de nível da consciência coletiva de grupos humanos".
(NISE DA SILVEIRA: Imagens do inconsciente)