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Um dos maiores indícios de declínio moral e intelectual num ser humano é fazer certas coisas, tomar certas atitudes, só porque os outros assim o fazem, sem se preocupar em avaliar o significado do que faz e de como age. E não é pelo fato de ser encarado como algo "normal" que não deixa de ser um sinal de violação do indivíduo contra si mesmo, contra a verdade de seu ser e até mesmo contra o seu semelhante.
Há pessoas que, para serem aceitas, numa sensação de pertencimento; ou, para serem admiradas, são capazes de cometerem as piores formas de atrocidades, justificando assassinatos em prol do seu grupo ou do seu meio. Jung já dizia que ser normal é a meta dos fracassados. No livro Normose: a patologia da normalidade, os autores dessa obra tratam justamente da patologia na normatização de condutas muitas vezes mediocres ou até mesmo monstruosas e desumanas, ou seja, comportamentos e culturas que não passam pelo crivo do questionamento e da consciência profunda de quem somos como forma de superarmos uma normose coletiva e instituída.
Roberto Crema, no seu ensaio que integra tal obra, vai dizer o seguinte a respeito dos perigos da normose: "Saúde não é ausência de sintomas. Às vezes, a saúde é ser capaz de chorar, de se agoniar, de se desesperar, ou seja, de sintomatizar. Assim, a normose aparece nos cenários contemporâneos como sendo, talvez, o maior perigo e o pior flagelo que nos envolve a todos neste planeta".
Pierre Weil mais adiante, num ensaio intitulado "Do estagnante ao mutante" faz a distinção entre dois tipos de pessoas, uma que prefere viver na normose da estagnação, da não adesão a necessidade de mudar; e a outra pessoa que tem a consciência de que é possível se desenvolver e evoluir através de um processo árduo de transformação interior. Como o autor mesmo diz: "O estagnar é o normótico; o mutante é o ser saudável, em processo de transformação. Ele muda, geralmente, porque passou por uma crise existencial, onde chorou e se desesperou, até encontrar a saída pelo caminho evolutivo".
Essa normose pode estar presente em vários âmbitos sociais, como por exemplo, na saúde, na educação, na política e nas relações interpessoais, afetando a nossa percepção singela das coisas e até de nossa individualidade que aos poucos pode ficar atrofiada para o conhecimento de seu potencial de individuação.
Uma patologia da normalidade pode estar, inclusive, camuflada nos comportamentos mais aceitáveis e louváveis, uma patologia na vida social de tantas pessoas que acham normal ser o que os outros são e que pode, no entanto, torná-las profundamente acovardadas e alienadas do que pode ser, de fato, uma vida efetivamente autêntica.
E o mal, por sua vez, pode se manifestar quando todos acreditam que o que fazem é para o bem da humanidade, suprimindo o senso crítico, a humanidade por que são vistos como ''anormais'' (e, portanto, indesejáveis) e a própria integridade do ser em prol da nivelação na ordem massificadora e coletiva.
Sabemos pela história que sociedades inteiras pagaram o preço por tamanha brutalidade coletiva, tendo um final completamente desastroso por ser meramente "cumpridores de ordem estatal" e nunca seres legisladores de suas próprias vidas e portadores de suas próprias consciências.
Ser o que o a-gente é, seguir inconscientemente as suas normas juntamente com uma massa que desconhece o seu destino, é também uma prova de perda gradativa da liberdade na vida de um ser humano e, quando essa perda é notória na vida de cada indivíduo, se torna um sinal de que uma sociedade, com sua cultura e valores, está vivendo no apogeu de sua decadência e de sua enfermidade.