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Poesias, ensaios e reflexões de  Alessandro

 

O segredo da existência humana reside não só em viver, mas também em saber para que se vive.   F. D.



Textos

A FENOMENOLOGIA DO MUNDO DA CASA

      A casa é certamente o refúgio de nossa paz interior e por que não dizer igualmente: um templo propício para o nosso enriquecimento espiritual, para a nossa vivência com o que há de mais sagrado? Sobretudo, é o espaço onde habita tudo aquilo que faz parte de nosso ser e fazer; ambiente para a qual a nossa vida anímica, com suas escolhas e caprichos, se encontra profundamente presente, se manifestando nas suas relações com as coisas que a cerca e se relaciona. Os espaços de nossa morada abriga, indelevelmente, os nossos segredos, valores e gostos pessoais, revitalizando o que antes era vazio e sem vida.

     É possível existir lugar mais cômodo e seguro do que um quarto bem aconchegante e organizado, e cujos ares são repletos de um boa fragrância aspergida? É possível um lugar mais inspirador do que uma sala cheia de livros de todos tipos e matizes?

     E como bem enfatizou Bachelard, cada lugar ou compartimento que povoa a casa é o que se constitui pelos espaços da intimidade, como por exemplo, os espaços do sótão, do porão, da cabana, da casa natal, dos cantos, etc. Ora, cada cômodo ou recanto silencioso, abriga um valor onde podemos exercer livremente a nossa aptidão para os sonhos, os devaneios, o repouso, a felicidade, a privacidade e o bem estar. Nada melhor, portanto, do que o onirismo e as boas memórias inerentes a casa de nossa infância, na qual, por sua vez, determina ulteriores modos de habitar esses espaços de intimidade e aconchego a que chamamos de casa.     

      Falar sobre esse ambiente de abrigo como uma morada repleta de significados e aconchego é adentrar numa fenomenologia incrivelmente rica, trazendo à tona um amálgama de poesia e conforto mediante a estética dos móveis, decorações e inúmeros utensílios, cada qual ordenado de acordo com o significado que atribuímos em nossa vida prática e quotidiana que, além de nos servir de utilidade propriamente dito, também são inspiradores o suficiente (conforme integram um todo bem ordenado) para proporcionar a beleza que agrada aos olhos do expectador com todas as suas formas e harmonias; ou a aura de serenidade e de bem estar no aí da casa que sempre almejamos e buscamos.

     Emanuele Coccia, no seu belíssimo livro Filosofia da casa: o espaço doméstico e a felicidade, nos traz uma interessante reflexão acerca da constituição do eu no mundo e no espaço em que habitamos e vivemos sob a ótica da casa em que formamos a nossa própria personalidade: ''Cada casa é apenas a evidência telúrica do fato de que, para dizer eu, precisamos do mundo, de espaço ao nosso redor, de coisas, de pessoas que imaginam junto conosco e com as quais podemos imaginar. O eu é esse turbilhão, no qual, por um instante, corpos e mentes procuram assimilar-se uns aos outros''. Em outras palavras, o autor concebe a casa como uma das evidências de nosso mundo ou o espaço onde formamos o que somos. É nesse ambiente onde dotamos de significados as coisas que nos relacionamos e, inclusive, um lugar onde nos permitimos interagir com outras pessoas e seres de forma mais criativa e salutar, estreitando uma proximidade que toca os níveis da intimidade.

     Conceber uma fenomenologia da casa é descrever e explorar, com a riqueza dos simbolismos inerentes a cada cômodo, os espaços onde interagimos com as coisas: esses lugares com os quais realizamos os nossos modos de ser e de viver. A casa é, certamente, a nossa própria possibilidade de exercer a nossa liberdade, a espontaneidade em nosso obrar e a criatividade em cada objeto dotado de importância para nossas vidas.      

     Uma vez que a fenomenologia é uma filosofia que reabilita a nossa percepção do mundo, como dizia Marleau-Ponty, podemos muito bem nos basear nessa filosofia (tão indispensável na sua relação com as psicologias) para descrever a forma de nos inserir no espaço de nossa casa, o ambiente por meio do qual habitamos e nos organizamos com base em certos valores e vontades. Trazer para essa realidade da casa que habitamos as contribuições da fenomenologia é ir em direção as coisas mesmas tal como elas se manifestam à percepção, o que implica resgatar a essência dos fenômenos de nosso mundo circundante e o nosso próprio vivido, que se realiza em nossa relação com as coisas que nos cerca. Não deixa de ser uma ontologia especial de nosso ser no mundo da casa, mundo esse fecundo em possibilidades de criação e revitalização espacial. A casa é, indiscutivelmente, esse mundo dotado de vida na qual podemos recriar a cada instante os nossos modos mais cômodos de morar e existir, bem como o sentido da felicidade na convivência com nosso microcosmo doméstico: formado e desenvolvido com a força de nossos esforços musculares e de nossa fibra e energia advindas de nossos desejos que crescem no coração de nossa existência. 

Alessandro Nogueira
Enviado por Alessandro Nogueira em 05/06/2025
Alterado em 05/06/2025
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